A Guerra da Ucrânia e a Terceira Guerra Mundial: o mundo multipolar é uma utopia reformista?
Ian Donovan, Democratas Consistentes, Grã Bretanha
A guerra na Ucrânia está em preparação há muitos anos. Suas origens estão na natureza incompleta da contrarrevolução que tomou conta da URSS, e mais centralmente da Rússia, em agosto de 1991. Embora tenha dilacerado a URSS e fraturado o aparato cuja principal função durante décadas foi manter a propriedade estatal dos principais meios de produção, não resultou no desmembramento e destruição da Federação Russa, componente central da URSS. Fraturar o Estado não é o mesmo que obliterar seus componentes administrativos. Muitos elementos importantes sobreviveram, embora em alguns casos sob títulos diferentes. Mas, em muitos casos, eles preservaram atitudes em relação à propriedade e aos vários componentes e classes da sociedade russa que eram simplesmente costumeiras e o foram por muitas décadas, quase como um reflexo automático.
Este é o contexto para o paradoxo da nova Guerra Fria de hoje. A força motriz da Guerra Fria original foi o antagonismo e a luta de classes: em 1917, impulsionada além do suportável pela primeira guerra mundial imperialista, a classe trabalhadora do Império Russo, apoiada pelo campesinato pobre dentro e fora do uniforme do exército, tomou o poder como classe e começou a tarefa de abolir o capitalismo. A onda revolucionária da qual este fez parte, apesar de convulsionar grande parte da Europa, só foi vitoriosa na Rússia. E isso foi depois de lutar contra a invasão de 13 exércitos estrangeiros, principalmente imperialistas – uma tentativa de contra-revolução de fora em aliança com o estado-maior da 'Guarda Branca' do czar executado. A revolução, na enorme, mas economicamente atrasada Rússia, ficou assim isolada e vítima de uma degeneração que fez com que o proletariado perdesse qualquer controle real do Estado criado pela revolução, que consolidasse uma camada privilegiada de burocratas operários sobre a classe trabalhadora no poder. O problema material é simplesmente que, enquanto o capitalismo imperialista avançado domina a maior parte do globo, uma revolução isolada dos trabalhadores, particularmente em um país atrasado, está em desvantagem material e, apesar do proletariado estar no poder, sofre opressão e privação material das condições de cerco econômico.
A única solução para isso é a revolução mundial e a derrubada da burguesia nesses países avançados opressores, para quebrar o cerco. O cerco econômico e militar de um estado operário é uma arma crucial do imperialismo contra tais estados, exceto uma invasão militar direta. Se a revolução se atrasa demais, começa a restauração capitalista, de maneira molecular. Primeiro com a cristalização de camadas privilegiadas que passam a defender a conciliação com o inimigo de classe, racionalizando o isolamento nacional numa 'teoria' de que o socialismo pode ser construído dentro das fronteiras nacionais, abandonando a revolução mundial como objetivo. Continua com a dissolução formal das organizações internacionais e a cristalização gradual e posterior da burocracia operária original por camadas mais abertamente burguesas.
Esse tipo de preparação molecular para a restauração capitalista levou várias décadas na URSS. Devido às profundas raízes sociais entre as massas que a revolução cavou, ela só pôde se cristalizar muito lentamente. Enquanto isso se cristalizava, a URSS, sob liderança burocrática desse tipo, lutou contra o gigantesco ataque imperialista de 1941 da Alemanha nazista e depois suportou o bloqueio militar e econômico de décadas do imperialismo dos EUA, expresso através da OTAN desde 1949. Mas a saúde da revolução mundial depende da classe trabalhadora organizada politicamente em escala internacional, ou seja, global, liderada por sua vanguarda política mais consciente e de pensamento claro. Uma vez perdido, se não for recuperado pela ação consciente das massas, a restauração capitalista nas mãos das diversas camadas privilegiadas analisadas acima torna-se praticamente inevitável.
Assim, não havia forças com autoridade política e influência social capazes de defender a URSS em agosto de 1991: apenas um remanescente decrépito do regime burocrático anterior tentou preservá-lo contra os piratas aloprados alinhados atrás de Gorbachev e especialmente Yeltsin. Eles eram realmente um bando fraco e quando seu esforço de golpe de três dias falhou, a URSS foi aparente e rapidamente varrida quando Yeltsin, o ex-chefe do Partido Comunista de Moscou, assumiu o controle da Rússia e rapidamente dissolveu o estado central, embarcando em uma massiva exercício de privatização e uma 'terapia de choque' [doutrina de rapina rentista-colonialista aplicada à Rússia nos anos 1990, tendo como modelo o Chile dos anos 1980, sob a ditadura de Pinochet] econômica que forçou milhões de pessoas à fome, desespero e morte enquanto seus padrões de vida eram rapidamente destruídos. A expectativa de vida caiu cerca de 5 anos sob Gorbachev e Yeltsin no início dos anos 1990, algo que só pode ser comparado em tempos de paz durante os anos 20 pela coletivização forçada do campo e sob o terror de Stalin, após a revolta Kulak de 1929 (depois que a burocracia, em sua fase anterior de mercantilização, encorajou as camadas camponesas soviéticas mais ricas a “enriquecerem-se”). Ambos os eventos mataram vários milhões. Mas apenas a fome stalinista é explorada pelo imperialismo e seus agentes para culpar o 'comunismo'; o massacre econômico sob Yeltsin teve a total aprovação das burguesias ocidentais e, de fato, Putin é odiado por elas precisamente por seus esforços para reverter uma série de crimes de Yeltsin contra os povos da ex-URSS.
A Nova Guerra Fria: Depois da Contrarrevolução
Há um enorme problema com a restauração capitalista em países onde por várias décadas o capitalismo não existiu e algum elemento de planejamento econômico tomou seu lugar. Isso está claro agora, quando uma nova Guerra Fria começou. No início da Guerra Fria, a ideologia do 'socialismo em um só país' levou à situação perversa de gigantescos estados operários deformados, como a URSS e a China, estarem em lados opostos do conflito geopolítico. Desde o início dos anos 1970 até o colapso da URSS em 1991, a China 'comunista' foi aliada do imperialismo dos EUA contra a URSS. Lutou, ora abertamente, ora secretamente, contra a URSS e seus aliados em várias guerras: invadiu o Vietnã em 1979 como “punição” pelo fato do Vietnã ter derrubado pela via armada, em 1978, o mais brutalmente irracional de todos os regimes stalinistas – o “Camboja Democrático” de Pol Pot (Camboja). A China armou e financiou, em aliança com os EUA e a Grã-Bretanha, o Khmer Vermelho quando eles efetivamente se tornaram guerreiros contrarrevolucionários contra o governo pró-vietnamita Hun Sen no Camboja durante a década de 1980. A China financiou os mujahedins islâmicos contrarrevolucionários no Afeganistão durante a década de 1980 em sua guerra apoiada pelos EUA contra a URSS e seus aliados nacionalistas de esquerda do Partido Democrático do Povo (PDPA), cuja derrota desempenhou um papel importante na destruição da URSS. Existiram também os anti-soviéticos e anticubanos financiados pela China, aliados do regime do apartheid na África do Sul, como a Renamo em Moçambique e a UNITA em Angola, contra governos populistas de esquerda pós-coloniais aliados soviéticos e cubanos, como a FRELIMO (Moçambique) e o MPLA (Angola). Foi quando a ideologia estatal da China era muito mais abertamente 'comunista' em coloração, em oposição a hoje, quando o mundo inteiro conhece o poderoso setor capitalista que desempenha um papel importante na China.
Uma forma de restauração capitalista ocorreu na China no início dos anos 1990, de cima para baixo através de uma grande camada burguesa, produto de uma prolongada mercantilização burocrática iniciada por volta de 1979 e prosseguindo por várias décadas, ganhando poder suficiente no Estado para absorver elementos-chave do próprio Partido Comunista governante. Até mesmo Xi Jinping, o atual Líder Supremo do Partido Comunista Chinês, faz parte dessa classe capitalista bilionária que teve sua gênese dentro do regime stalinista e tem algumas características marcadamente diferentes da norma capitalista, particularmente como visto nos países imperialistas onde o poder estatal é claramente uma ferramenta de poder corporativo. Na China, até certo ponto, o poder estatal se sobrepõe ao poder corporativo de uma maneira nova e sem precedentes.
Tanto a Rússia quanto a China são, portanto, formas de sociedades híbridas, onde o capitalismo é muito poderoso e ainda assim o poder do estado contém muito do que restou das décadas em que a forma dominante de propriedade era a propriedade estatal e o planejamento econômico. Não o socialismo, mas sociedades onde as formas de propriedade correspondiam ao domínio da classe trabalhadora e podem ser consideradas parte do que deveria ser a transição para o socialismo. O socialismo, ou a fase inferior do comunismo, sendo definido como uma sociedade onde os antagonismos sociais baseados em classes não existem mais, embora o horizonte do que Marx chamou de "direito burguês" ainda não tenha sido cruzado. A desigualdade social e econômica persiste sob o socialismo não entre classes como tal, mas entre diferentes setores dos próprios produtores associados, simplesmente porque a produção social não atingiu o nível de abundância para todos a ponto de tornar irrelevante a desigualdade formal. Haverá algumas funções até então que exigirão maior remuneração de material simplesmente porque sem isso não serão realizadas. À medida que o trabalho se torna mais social e gratificante em seus próprios termos, é provável que essas sejam as tarefas mais desagradáveis e/ou perigosas. Em um nível maior de riqueza material produtiva e social, tais considerações se tornarão cada vez mais irrelevantes, e a sociedade cruzará o horizonte do 'direito burguês' para o comunismo real, atingirá o 'estágio superior'. Isso, porém, é um processo que leva tempo. E nem a URSS nem a China "Vermelha" alcançaram sequer o estágio inferior do comunismo ("socialismo") conforme definido por Marx, muito menos o estágio superior.
Limites da Contrarrevolução; Mais possibilidades revolucionárias
Quando a história retrocede através da contrarrevolução, raramente consegue fazê-lo completamente. A revolução francesa que começou em 1789 foi a maior das revoluções sociais que levaram a burguesia ao poder e derrubaram o sistema feudal de propriedade e produção que precedeu o capitalismo na Europa. Em termos de seu impacto ao fornecer o ímpeto para a derrubada das formas locais de feudalismo e, pelo menos inicialmente, para a democracia na Europa, foi um dos maiores eventos da história. A fase radical-democrática da revolução sob os líderes históricos do partido jacobino, Robespierre, Danton e Saint-Just, onde a aristocracia francesa foi basicamente varrida pela dura medida da guilhotina, foi sucedida pelo Termidor, a tomada do poder por uma facção mais conservadora, e depois o Império burguês de Napoleão Bonaparte. Mas Napoleão, embora seu governo tenha encerrado decisivamente a fase radical da revolução em casa, exportou a revolução burguesa antifeudal por grande parte da Europa, quase até Moscou. Mesmo após a derrota final de Napoleão, a ordem feudal na Europa foi danificada de forma irreparável. No século seguinte, todos os absolutismos feudais, incluindo a Prússia e a Rússia czarista, foram forçados a introduzir medidas capitalistas social-revolucionárias de cima para tentar evitar que fossem impostas a eles por baixo, como na França revolucionária.
A derrota final de Napoleão em 1815 levou a uma tentativa de restaurar a antiga monarquia Bourbon francesa. Luís XVIII e seu sucessor Carlos X não conseguiram simplesmente restaurar o feudalismo e o absolutismo. O antigo regime na França era irreparável e, como provou a história do século XIX , também o foi a ordem feudal em toda a Europa, que foi convulsionada por revolução após revolução, de cima para baixo, ao longo do século XIX . A partir desses eventos revolucionários burgueses, o próprio movimento da classe trabalhadora tomou forma e começou a agir como uma força de classe independente por direito próprio, com as revoluções burguesas se entrelaçando com as lutas de classe do proletariado em uma extensão crescente ao longo do século XIX, atingindo um ponto alto inicial com a Comuna de Paris: a primeira tentativa de curta duração de criar um estado operário na história. Isso ocorreu no final da guerra franco-prussiana de 1870-71, que foi de fato a culminação da revolução burguesa (de cima) que unificou a Alemanha e a criou como uma grande potência capitalista.
“O proletariado da URSS é a classe dominante em um país atrasado onde ainda faltam as necessidades mais vitais da vida. O proletariado da URSS governa em uma terra que consiste em apenas um doze avos da humanidade; o imperialismo domina os onze doze avos restantes. A dominação do proletariado, já mutilada pelo atraso e pobreza do país, é dupla e triplamente deformada sob a pressão do imperialismo mundial. O órgão de domínio do proletariado – o Estado – torna-se um órgão de pressão do imperialismo (diplomacia, exército, comércio exterior, ideias e costumes). A luta pela dominação, considerada em escala histórica, não é entre o proletariado e a burocracia, mas entre o proletariado e a burguesia mundial… Para a burguesia – tanto fascista quanto democrática – façanhas contrarrevolucionárias isoladas… não bastam; precisa de uma contrarrevolução completa nas relações de propriedade e na abertura do mercado russo. Enquanto não for assim, a burguesia considera o Estado soviético hostil a ela. E está certa.
“O regime interno nos países coloniais e semicoloniais tem um caráter predominantemente burguês. Mas a pressão do imperialismo estrangeiro altera e distorce tanto a estrutura econômica e política desses países que a burguesia nacional (mesmo nos países politicamente independentes da América do Sul) atinge apenas parcialmente o auge de uma classe dominante. A pressão do imperialismo sobre os países atrasados não muda, é verdade, seu caráter social básico, pois o opressor e o oprimido representam apenas diferentes níveis de desenvolvimento em uma mesma sociedade burguesa. No entanto, a diferença entre a Inglaterra e a Índia, o Japão e a China, os Estados Unidos e o México é tão grande que diferenciamos rigorosamente entre países burgueses opressores e oprimidos e consideramos nosso dever apoiar os últimos contra os primeiros.
“A pressão do imperialismo sobre a União Soviética tem como objetivo a alteração da própria natureza da sociedade soviética... Com isso, o domínio do proletariado assume um caráter abreviado, limitado, distorcido. Pode-se dizer com toda a razão que o proletariado, governando um país atrasado e isolado, continua sendo uma classe oprimida. A fonte da opressão é o imperialismo mundial; o mecanismo de transmissão da opressão – a burocracia. Se nas palavras 'uma classe dominante e ao mesmo tempo uma classe oprimida' há uma contradição, então ela não decorre de erros de pensamento, mas da contradição da própria situação na URSS. É precisamente por isso que rejeitamos a teoria do socialismo em um só país”. 25 de novembro de 1937, https://www.marxists.org/archive/trotsky/1937/11/wstate.htm
A justaposição da situação do capitalista semicolonial das classes dominantes, com o do proletariado no poder em um estado operário atrasado e isolado, é altamente sugestivo do que Trotsky considerava provável que acontecesse se o proletariado perdesse o poder como classe. Em uma situação em que o proletariado, mesmo no poder, era oprimido pelo cerco e pelo atraso imperialista, é óbvio que qualquer regime burguês que o substituísse enfrentaria as mesmas condições materiais e seria também uma “classe semigovernante e semioprimida”, sujeita ao imperialismo. Essa suposição marxista básica, implícita na passagem acima, embora não explicitada, é de enorme importância hoje para entender não apenas a Rússia, mas também a China,
O que realmente enfrentamos são as consequências da contrarrevolução na URSS. Trotsky também fez algumas observações úteis sobre o curso da contrarrevolução, real e provável, no contexto das revoluções francesa (burguesa) e russa (proletária) em um artigo anterior "O Estado Operário, Termidor e Bonapartismo" (1935). Falando diretamente sobre a revolução francesa, ele escreveu:
“Depois da revolução democrática profunda, que liberta os camponeses da servidão e lhes dá a terra, a contrarrevolução feudal é geralmente impossível. A monarquia derrubada pode restabelecer-se no poder e cercar-se de fantasmas medievais. Mas já é impotente para restabelecer a economia do feudalismo. Uma vez liberadas dos grilhões do feudalismo, as relações burguesas se desenvolvem automaticamente. Eles não podem ser controlados por nenhuma força externa; eles próprios devem cavar sua própria sepultura, tendo previamente criado seu próprio coveiro." https://www.marxists.org/archive/trotsky/1935/02/ws-therm-bon.htm
Ele contrasta isso com o que seria provável no caso do colapso do regime stalinista e da revolução russa com ele:
“É completamente diferente com o desenvolvimento das relações socialistas. A revolução proletária não apenas liberta as forças produtivas dos grilhões da propriedade privada, mas também as transfere à disposição direta do Estado que ela mesma cria. Enquanto o Estado burguês, depois da revolução, se limita a um papel de polícia, deixando o mercado às suas próprias leis, o Estado operário assume o papel direto de economista e organizador. A substituição de um regime político por outro exerce apenas uma influência indireta e superficial sobre a economia de mercado. Pelo contrário, a substituição de um governo operário por um governo burguês ou pequeno-burguês levaria inevitavelmente à liquidação dos princípios planejados e, posteriormente, à restauração da propriedade privada. Ao contrário do capitalismo, o socialismo é construído não automaticamente, mas conscientemente… ”
“Outubro de 1917 completou a revolução democrática e iniciou a revolução socialista. Nenhuma força no mundo pode reverter a reviravolta agrária-democrática na Rússia; nisto temos uma analogia completa com a revolução jacobina. Mas uma reviravolta kolkhoziana é uma ameaça que mantém toda a sua força, e com ela está ameaçada a nacionalização dos meios de produção. A contrarrevolução política, mesmo que recuasse para a dinastia Romanov, não poderia restabelecer a propriedade feudal da terra. Mas a restauração do poder de um bloco menchevique e social-revolucionário seria suficiente para obliterar a construção socialista”. ibid
Mas o que realmente aconteceu é mais complexo. Tivemos algo mais ou menos semelhante à “substituição de um governo dos trabalhadores por um governo burguês ou pequeno-burguês…” e “….a restauração da propriedade privada” na Rússia desde o colapso de 1991 da URSS. Na China, temos políticas implementadas há décadas – abolição de Kolkhoz (agricultura coletiva) e o encorajamento nu do enriquecimento capitalista rural e urbano – sob o governo do Partido Comunista Chinês – que Trotsky considerou que levaria ao rápido colapso da União Soviética em uma contrarrevolução liderada pelos kulaks no final da década de 1920. Pelos padrões da luta da Oposição de Esquerda contra o bloco Stalin-Bukharin e seu Neo-NEP – é inconcebível que o regime do Partido Comunista Chinês, com seus numerosos capitalistas bilionários cuja influência penetre até o topo do regime do PCC, poderia ser descrito hoje como um estado operário. É evidente que a China hoje é algo fundamentalmente diferente do antigo regime do PCC sob Mao, e que o poder do Estado hoje é usado para defender e promover o desenvolvimento capitalista da China, não para suprimi-lo.
E, no entanto, longe de estabilizar o capitalismo mundial sob o domínio da burguesia imperialista, agora temos um nível considerável de unidade na luta defensiva dos dois gigantes ex-estados operários da Rússia e da China, contra o imperialismo liderado pelos EUA/OTAN, que cresce cada vez mais histérica todos os dias. Vale a pena relembrar as observações de Trotsky acima:
Para a burguesia … façanhas contra-revolucionárias isoladas … não bastam; precisa de uma contrarrevolução completa nas relações de propriedade e na abertura do mercado russo. Enquanto não for assim, a burguesia considera o Estado soviético hostil a ela..."idem
Isso parece ter sido apenas parte da história. Assim como as antecipações e teorizações dos marxistas sobre o que poderia acontecer se uma revolução dos trabalhadores triunfasse em um país atrasado, as teorizações do que aconteceria se tais revoluções fossem posteriormente derrotadas, mesmo pelos melhores teóricos marxistas, incluindo principalmente o próprio Trotsky, provaram ser inadequadas para a tarefa. “A teoria é cinza, mas o verde é a árvore da vida” é um velho ditado, mas isso não significa que alguém deva descartar a teoria marxista de uma maneira arrogante e burra. A teoria é um guia para a ação. Mas tal é a profundidade e a complexidade dos eventos históricos mundiais, quando eles emergem, que invariavelmente causam uma crise nas teorias existentes, uma necessidade de reexaminar, corrigir e aprofundar a teoria existente para fornecer um guia atualizado de ação para um novo período.
Parece que Trotsky estava correto ao dizer, sobre a revolução burguesa, que “uma vez libertada dos grilhões do feudalismo, as relações burguesas se desenvolvem automaticamente” (ver anteriormente). No entanto, essa automaticidade não se transfere mecanicamente para uma situação em que não é o feudalismo que é derrubado pelo capitalismo, mas um estado operário, porém degenerado, baseado na propriedade socializada.
A restauração “ao poder” de algo bastante semelhante a “um bloco menchevique e social-revolucionário” ocorreu na década de 1990 em vários estados operários burocraticamente governados, mas não parece ter sido simplesmente capaz de “obliterar completamente a construção socialista”. Quando estados operários degenerados e deformados foram derrubados por forças pró-capitalistas, não aconteceu, ao contrário do feudalismo, que “as relações burguesas se desenvolvessem automaticamente”. O que de fato vimos é que o tipo de “relações burguesas” que se desenvolveram foi altamente problemático e de fato deu origem a formas híbridas de sociedade nas quais a burguesia imperialista não tem nenhuma confiança. A França do século XIX fez convulsões burguesas-revolucionárias após a derrota de Napoleão, com suas revoluções suplementares em 1830, 1848 – que convulsionou toda a Europa – e 1871 – que deu origem à Comuna de Paris, a primeira tentativa na história de criar uma estado dos trabalhadores.
Contra-revoluções 'desviantes' e histeria imperialista
O que parece ter surgido naqueles estados operários onde as revoluções sociais nativas já foram vitoriosas e derrotadas muitas décadas depois, são estados híbridos onde as relações capitalistas são modificadas de forma significativa, e esses estados não funcionam nem como cópias dos estados imperialistas, ou como estados vassalos semicoloniais. Nem a Rússia nem a China se enquadram em nenhuma das categorias. Ao contrário dos 'estados satélites' produzidos passivamente, como a maioria na Europa Oriental, que geralmente se tornaram satélites/vassalos do imperialismo ocidental.
O tratamento de choque mortal do imperialismo na Rússia sob Yeltsin na década de 1990 produziu uma reação popular tão grande que dentro da própria máquina do estado, um inimigo foi gerado, personificado por Putin, que reverteu muitos dos ataques e, embora não tenha restaurado o status quo anterior, produziu uma variante de uma “economia mista” social-democrata com concessões consideráveis ao bem-estar das massas, cuja gênese é indiscutivelmente bastante singular. Em um estado capitalista 'puro', seria necessária a ameaça da própria revolução para produzir tais concessões que estariam sempre sob ameaça. Na Rússia pós-soviética, o próprio aparato estatal, fortemente marcado por sua origem em um estado operário, respondeu ao sentimento popular de massa sem tais convulsões.
Algo análogo parece ter acontecido na China, mas também com algumas diferenças importantes. Uma diferença fundamental é que na China, inicialmente, o programa capitalista-restauracionista foi realizado de cima, sem o tipo de guerra econômica total e carnificina da população da classe trabalhadora que aconteceu na ex-URSS, sob Ietsin. Outra diferença fundamental é que a China realmente se beneficiou do neoliberalismo ocidental na medida em que se tornou um repositório chave de 'terceirização' - migração de empregos - dos países imperialistas ocidentais, cujos governantes capitalistas viam a classe trabalhadora barata mas altamente educada da China no contexto da aparente restauração capitalista como uma oportunidade para uma taxa maciçamente aumentada de lucro em relação ao que era possível nos próprios países imperialistas. A China não foi o único país que atuou como destinatário dessa terceirização, mas seu aparato estatal, que também teve sua origem em uma era de planejamento econômico estatal, soube usá-la para embarcar em sua própria industrialização massiva. Como resultado, a China tornou-se a “oficina do mundo” de hoje, de uma maneira que lembra a Grã-Bretanha durante a Revolução Industrial do século XIX, mas em escala muito mais ampla.
A verdadeira força motriz da russofobia ocidental não é o suposto 'autoritarismo' do regime político da Rússia, mas a raiva pela influência política que as massas russas ainda mantêm dentro do que costumava ser seu estado. O ódio ao próprio povo russo é um elemento-chave da russofobia ocidental de hoje, que se assemelha ao ódio nazista aos judeus por seu suposto “bolchevismo” inerente. Da mesma forma, a sinofobia de hoje é a fúria do imperialismo diante do aparentemente inesperado desenvolvimento industrial da China. Isso não deveria acontecer – a China deveria ser uma mera fonte de lucro, não um grande adversário industrial capaz de ameaçar a hegemonia dos EUA. E a Rússia e a China juntas são uma força de compensação ainda mais potente contra a hegemonia das potências imperialistas que persiste, pelo menos, desde o final do século XIX.
Então, o que está na raiz desse paradoxo? Uma sugestão de resposta pode ser encontrada em uma formulação na obra de Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico (1880), onde ele faz o seguinte comentário sobre a tendência do capitalismo para a geração de trustes e monopólios:
“Nos trusts, a liberdade de competição se transforma em seu oposto – em monopólio; e a produção sem um plano definido da sociedade capitalista capitula perante a produção segundo um plano definido da sociedade socialista invasora. Certamente, isso ainda beneficia e beneficia os capitalistas. Mas, neste caso, a exploração é tão palpável, que deve desmoronar. Nenhuma nação tolerará a produção conduzida por trustes, com uma exploração tão descarada da comunidade por um pequeno bando de negociantes de dividendos. https://www.marxists.org/archive/marx/works/1880/soc-utop/ch03.htm , grifo nosso
Esta formulação, sobre a 'sociedade socialista invasora', decorre da ideia básica do marxismo, compartilhada por Marx e Engels, aquele 'socialismo' ou 'comunismo' que eles consideravam como duas manifestações da mesma coisa ('inferior' e 'superior') representava um modo de produção superior ao capitalismo:
“O desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social é a tarefa histórica e a justificação do capital. Esta é apenas a maneira pela qual ele cria inconscientemente os requisitos materiais de um modo de produção superior”. Capital, vol. 3, Moscou, 1966, cap. 15, pág. 259Grande parte da polêmica de Trotsky contra os stalinistas nos anos 20 e 30 era contra a teoria do socialismo em um só país, a noção de que era possível construir um modo de produção socialista completo em uma sociedade qualitativamente mais atrasada do que as potências capitalistas-imperialistas muito mais fortes. que o circundava. Essa crítica mantém toda a sua relevância e potência. Mas, novamente, Trotsky também observou que, apesar disso, o curso reacionário do regime stalinista “… ainda não tocou nas bases econômicas do Estado criado pela revolução que, apesar de toda a deformação e distorção, assegura um desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas” (Mais uma vez: a URSS e sua defesa)
Engels considerou que o modo de produção socialista, que em 1880 era algo que pertencia completamente ao futuro quando escreveu Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico, tinha a capacidade de "invadir" o seu capitalismo contemporâneo e, como uma espécie de expressão inconsciente do processo histórico, afetar o desenvolvimento do mesmo capitalismo para (de certa forma) antecipar desenvolvimentos futuros que se concretizariam sob um modo de produção superior. Esta é apenas uma expressão do conceito marxista básico que Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico expressa - a tendência objetiva do desenvolvimento social em direção ao socialismo:
“As novas forças produtivas já superaram o modo capitalista de usá-las. E este conflito entre forças produtivas e modos de produção não é um conflito engendrado na mente do homem, como aquele entre o pecado original e a justiça divina. Ela existe, de fato, objetivamente, fora de nós, independentemente da vontade e das ações até mesmo dos homens que a provocaram. O socialismo moderno nada mais é do que o reflexo, em pensamento, desse conflito, real, de fato...” Engels op. cit.A questão é que o processo de restauração capitalista, a destruição de um estado operário há muito estabelecido, não pode ser "automático" da maneira pela qual o capitalismo é capaz de acabar com o feudalismo. A existência de um estado operário, por mais deformado ou degenerado que seja, significa que esse estado já iniciou a transição para um modo de produção superior, o comunismo. Mesmo que a transição seja bloqueada pelo atraso social, pelo cerco imperialista e pelo monopólio do poder de uma burocracia que se opõe e tenta sabotar a revolução mundial e, assim, a própria conclusão da transição, ... a transição já começou. O trem deixou a estação, mesmo que esteja parado apenas algumas centenas de metros abaixo de uma linha de muitos quilômetros de extensão. É extremamente pesado e ainda muito difícil simplesmente arrastar de volta ao seu ponto de partida e além.
Então, o que temos na Rússia e na China são formas de sociedade onde o capitalismo parece ter sido restaurado, mas a “sociedade socialista invasora” modificou e bloqueou a transição para trás. Os regimes anteriores iniciaram algum tipo de transição para o modo de produção comunista, embora tenha sido sabotado e bloqueado por esses mesmos regimes, e a existência dessas conquistas parciais se mostrou muito mais difícil de destruir do que se previa anteriormente, inclusive pelo movimento trotskista em suas tentativas fragmentárias de abordar o que aconteceria se o capitalismo fosse restaurado. Isso modifica substancialmente o capitalismo da Rússia e da China e tem produzido híbridos anômalos, que não são eles próprios imperialistas (por que eles seriam, os antigos estados operários não operavam em uma base capitalista, muito menos em uma base capitalista predatória e monopolista?).
Os híbridos podem ser de tipos heterogêneos, dependendo das especificidades de sua história e origens, não havendo uma bandeira ideológica pré-estabelecida que seja imperativa para que suas tendências políticas dominantes necessariamente sustentem. Embora a China seja governada pelo Partido Comunista, cuja ideologia é uma bastardização capitalista do que era o 'comunismo' stalinista, mas na verdade não é mais, a Rússia é governada pelo presidente cristão ortodoxo burguês de centro-direita (sui-generis) Vladimir Putin, líder do partido hegemônico e altamente popular 'Rússia Unida', cuja autoridade decorre em grande parte do programa e da prática econômica, que de forma tangível e indiscutivelmente beneficiou enormemente a maioria dos russos desde o fim da carnificina de Ieltsin.
Putin é uma espécie de bonapartista moderado que equilibra forças à sua esquerda e à sua direita. À sua esquerda está a principal oposição, o Partido Comunista da Federação Russa (KPRF), o antigo partido stalinista que tem muitos comunistas subjetivos em sua base, mas ainda não determinou o que realmente representa. À sua direita está a tendência amplamente 'eurasiana' liderada de forma mais proeminente pelo filósofo Alexander Dugin, que muitos no Ocidente apelidam de fascista, nacionalista russo, grande imperialista russo, etc. Esse tipo de demonização foi usado para justificar o assassinato em agosto de 2022 de sua filha, a cientista política e jornalista Dariya Dugina, provavelmente por terroristas nazistas ucranianos em parceria com agências de inteligência ocidentais, que estão engajados em uma campanha contínua de assassinato e terrorismo contra apoiadores públicos de A resistência da Rússia à guerra por procuração do Ocidente na Ucrânia. O objetivo deles era o próprio Dugin, não sua filha, mas eles entenderam errado.
Um exame minucioso da política de Dugin revela que ele se opõe ao nacionalismo étnico, rejeita todo o conceito de estado-nação explicitamente em teoria e, na verdade, olhando para trás na história, conseguiu construir uma justificativa "cristã ortodoxa" para o apoio crítico a Lenin e As forças do Partido Bolchevique de Trotsky na Guerra Civil de 1918-21 contra as forças da Guarda Branca, principalmente cristãs ortodoxas, a quem ele perspicazmente descarta como ferramentas do imperialismo anglo-americano e, portanto, escravizadores do povo russo (como elaborado em seu trabalho de 1997, Foundations of Geopolitics). Assim, Dugin, a pressão da 'direita' sobre Putin, é revelado como um híbrido e um ilustrador perfeito da natureza híbrida do estado. Um suposto 'fascista' que defende o apoio crítico ao bolchevismo, enquanto os fascistas reais, como Hitler e Mussolini, foram movidos pelo ódio mais virulento ao bolchevismo.
Dugin é demonizado como uma espécie de nazista pelas potências ocidentais que apóiam os nazistas, o que anda de mãos dadas com as representações de Putin como uma figura de Hitler na mídia reacionária. Supõe-se que Dugin seja o “Cérebro de Putin” neste suposto esforço absurdo de Hitler. Qualquer um pensaria que Dugin, portanto, é um defensor da dominação mundial russa, ou algo assim. Mas não: Dugin também é autor de um livro de 2021 intitulado 'A Teoria do Mundo Multipolar' que, longe de defender a dominação mundial de alguém, pede a colaboração voluntária de uma variedade de 'civilizações' para garantir que ninguém seja capaz de exercer o domínio mundial dominação (ou 'dominação de espectro total' como os neocons dos EUA colocam - eles realmente querem hegemonia/dominação mundial). Dugin rejeita os estados-nação e tem um esquema em que essas 'civilizações' – uma delas centrada na Rússia cristã ortodoxa – fazem parte dessa multipolaridade colaborativa. Ele realmente quer uma 'civilização' centrada na Rússia fortalecida e mais amplamente influente para desempenhar um papel influente no mundo, e algumas de suas ideias e propostas estão profundamente em desacordo com o marxismo e a perspectiva da libertação humana, mas isso está muito longe da representação russofóbica. Ele é subjetivamente hostil ao imperialismo ocidental, embora de uma forma bastante semelhante (mutatis mutandis) aos sentimentos que movem os clérigos xiitas militantes no Irã ou no Líbano, nada parecido com o nazismo. A política e a literatura de Dugin requerem um nível de análise que está além do escopo deste artigo e terá que esperar. Aqui apenas arranhamos a superfície do fenômeno.
Esses estados híbridos pós-stalinistas provaram ser capazes, devido aos enormes ganhos produtivos (e desenvolvimentos militares) obtidos sem o capitalismo, de desafiar o capitalismo imperialista com muito mais eficácia do que quaisquer semicolônias rebeldes anteriores ou contemporâneas. Em vez disso, como os imperialistas declararam uma nova Guerra Fria cautelosa, mas acelerada contra eles (com elementos 'quentes', como a Ucrânia), eles se mostraram capazes de liderar países capitalistas semicoloniais, há muito forçados à dependência e vassalagem aos imperialistas, em revolta contra a hegemonia imperialista.
A revolta das vítimas do imperialismo de hoje
Temos efetivamente uma revolta de numerosas semicolônias contra a hegemonia imperialista dos EUA de natureza econômica e política, sob a bandeira dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e também da Organização de Cooperação de Xangai (SCO). Esses corpos se sobrepõem, embora a SCO seja especificamente eurasiana, enquanto o BRICS é mundial. Apesar do impulso de guerra imperialista e das sanções econômicas contra a Rússia, e da ameaça de 'sanções' contra qualquer país fora do 'clube' imperialista que não aderir às sanções, 20 países se inscreveram para ingressar no BRICS, incluindo Argentina, Argélia, Arábia Saudita, Egito, Irã, Indonésia e muitos outros. O BRICS antes de sua adesão abrangiam a população de 40% da humanidade… a adesão dos esperançosos recém-chegados sem dúvida abrangeria a maioria da população dos países do globo.
Os BRICS tem algo do sabor do Movimento Não-Alinhado (NAM) liderado por Nkrumah, Nasser, Nehru, Sukharno, etc. junto com o dissidente liberal-stalinista Tito no início do pós-guerra. Embora ainda exista formalmente, sua influência é muito diminuída. O NAM pretendia manobrar entre os EUA e o bloco soviético na Guerra Fria, entendendo que a maioria dos países semicoloniais e suas burguesias tinham grandes divergências de interesse com ambos. Mas agora há muito mais semelhança entre esses países e a Rússia e a China, a maioria dos estados burgueses semicoloniais os vê como almas gêmeas, porém mais poderosas, e tendo mudado a relação de forças contra a dominação imperialista de uma forma que não é problemática para tais países. regimes burgueses. Poucos levam a sério o 'comunismo' verbal da China e a Rússia não tem tal obstáculo ideológico, mesmo formalmente. Assim, o principal órgão de contestação à hegemonia estadunidense em favor do mundo multipolar são os BRICS.
Houve algumas indicações surpreendentes de mudanças no mundo em detrimento da hegemonia imperialista dos EUA que vieram à tona pela guerra na Ucrânia. A desdolarização, o alijamento do dólar americano como moeda habitual com a qual são feitas as transações internacionais – antes quase independentemente de quem negocia com quem – tornou-se um grande movimento. Isso é uma ameaça à estabilidade financeira e ao poder militar dos EUA, já que os EUA têm conseguido, por muitas décadas, assinar praticamente um cheque em branco para seus militares com base nos ganhos recebidos do dólar, sendo praticamente a moeda dominante no comércio internacional. Sua rede mundial de bases militares é financiada por meio desse mecanismo. A ascensão do bloco Rússia-China ameaça tudo isso, já que o BRICS criou seu próprio banco de desenvolvimento, o NDB, e também está discutindo a criação de uma nova moeda acordada para transações internacionais.
Um índice surpreendente de como as coisas estão mudando está no Oriente Médio. Em acordos mediados pela diplomacia chinesa, a Arábia Saudita e o Irã, que estão em um estado de amargo antagonismo há muitos anos, como expresso de forma mais aguda na guerra do Iêmen, restauraram relações diplomáticas plenas, e a guerra do Iêmen aparentemente está diminuindo. A Síria, cujo governo de Assad os EUA e seus aliados tentaram derrubar de maneira semelhante à Líbia e foram impedidos de fazê-lo porque a Síria recebeu apoio armado da Rússia, agora foi restaurada como membro da Liga Árabe depois que ex-clientes dos EUA abandonaram seus antagonismo. Os EUA estão na defensiva no Oriente Médio e a China também fez exigências para um acordo sobre a questão Israel-Palestina,
Mas a questão mais ampla é se esse conceito de mundo multipolar é de alguma forma um antídoto para o capitalismo imperialista. E a resposta deve ser um profundo ceticismo em relação a isso. O desenvolvimento capitalista criou um clube exclusivo de potências capitalistas monopolistas que basicamente se enriqueceram massivamente às custas da maior parte da população mundial por um século e meio, com alguns séculos de preparação antes disso através do mercantilismo e da acumulação primitiva de riqueza por meios como a reativação da escravidão em escala industrial, que só foi eliminada quando se tornou um obstáculo ao desenvolvimento capitalista. O problema é que um mundo multipolar não acaba com essas potências, que inevitavelmente irão contra-atacar de alguma forma, seja em conjunto ou separadamente. A hegemonia dos EUA não é a única forma possível, e a OTAN é a expressão atual da dominação imperialista. Vale lembrar que entre as duas guerras mundiais não houve uma hegemonia imperialista indiscutível – esse papel foi disputado entre Alemanha, Grã-Bretanha e Estados Unidos e a resultante disputa armada mergulhou o mundo inteiro na guerra. Tal desenvolvimento no futuro poderia destruir a própria humanidade.
O imperialismo é coerente em seus objetivos socioeconômicos, embora possa ser desorganizado por desafios inesperados de outras forças. Ele não irá simplesmente desaparecer em um 'mundo multipolar' pacífico. O leão não se deitará humildemente com suas vítimas para o bem maior – para o imperialismo, a maioria da humanidade é apenas forragem para exploração. O problema que eles enfrentam é uma crise histórica – o próprio sistema capitalista entrou em decadência devido ao declínio das taxas de lucro nos países avançados a tal ponto que somente a terceirização, esquemas de mão de obra barata no exterior e fraudes financeiras em escala industrial, como Credit Default Swaps etc. podem manter a taxa de lucro. Essa é uma contradição inerente ao próprio capitalismo, como Marx apontou, e afeta todo o capitalismo.
A criação de estados híbridos capitalistas/pós-capitalistas como a Rússia e a China, uma nova forma anômala de capitalismo não-imperialista que usa o poder do estado para compensar os impulsos mais irracionais do capital, não pode ser simplesmente reproduzida. Porque é preciso a criação de um estado operário fundamentalmente débil, e depois sua ruína, para trazer tal híbrido à existência. E outro paradoxo é que foi a força total dos estados imperialistas existentes ao longo de quase um século e meio que permitiu que esses mesmos imperialismos agissem como um clube exclusivo e bloqueassem o desenvolvimento de outras potências capitalistas em competidores imperialistas. Assim, o único novo imperialismo criado no final do século XX , que não surgiu organicamente, mas foi transplantado, foi Israel.
Existe a possibilidade de que uma derrota estratégica para os imperialismos existentes por esses estados híbridos possa ter o efeito de criar o espaço político e econômico para a cristalização de novos estados imperialistas. Os Estados semicoloniais mais desenvolvidos que estão entrando na onda dos BRICS podem muito bem receber os meios de desenvolvimento econômico a ponto de serem capazes de explorar os países semicoloniais menos poderosos e, assim, começar a se comportar como novos imperialismos. Isso parece uma possibilidade, por exemplo, com a Índia e a Indonésia, cujo rápido desenvolvimento econômico não é restringido por nenhum tipo de estado híbrido herdado de uma revolução social anterior.
Mesmo que os sonhos mais loucos dos teóricos do mundo multipolar sejam realizados, e um novo mecanismo mundial de colaboração voluntária entre pedaços discretos do planeta seja capaz de trazer uma nova racionalidade sustentada para as relações internacionais, isso não resolverá o problema fundamental: a humanidade ainda sofrerá com as contradições do capitalismo. Todas as diferentes 'civilizações' no esquema do 'mundo multipolar' de Alexander Dugin são basicamente construídas sobre alguma forma de capitalismo, independentemente da 'cultura' e, portanto, estão sujeitas a algumas ou todas essas contradições, mesmo abstratamente sem o papel do imperialismo estabelecido estados capitalistas. A ideia de que tal configuração poderia superar a tendência do capitalismo à guerra e à barbárie é, de fato, um reformismo utópico.
Este momento contraditório na história do capitalismo nunca teria sido possível sem a revolução socialista dos trabalhadores e camponeses de 1917 na Rússia, e depois a revolução secundária, derivada, mas enorme, dos exércitos camponeses de Mao na China, levando a 1949. Provará ser um momento fugaz, a menos que o problema apontado anteriormente, da dominação do movimento operário, particularmente nos países avançados, pelos social-imperialistas, em guerra com aqueles que estão na perspectiva revolucionária dos bolcheviques, seja resolvido. Para resolvê-lo, uma nova Internacional Comunista deve ser criada, com raízes profundas nos próprios países imperialistas, capaz de resistir à pressão imperialista e prevalecer. Um sucessor das tentativas anteriores da Terceira e Quarta Internacionais que por diversas razões caíram no esquecimento.
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