Porque não devemos ser liberais com a repressão do Estado capitalista e menos ainda com os fascistas
Humberto Rodrigues
“É natural para um liberal falar em “democracia” em geral. Um marxista nunca se esquecerá de colocar a questão: Para que classe?” (Lenin, a Revolução Proletária e o renegado Kautsky)
O problema do título acima está sempre presente nas polêmicas políticas nacionais. A questão ganhou força novamente a partir da cassação do Deputado bolsonarista Daniel Silveira (PTB) pelo Supremo Tribunal Federal. Em seguida, o deputado foi indultado pelo presidente da República. Trata-se de uma queda de braço entre o Governo Bolsonaro, de um lado, incluindo o Executivo e os presidentes das duas casas do Legislativo Nacional, e o STF, do outro. Acreditamos necessário nos meter nessa polêmica que até agora se encontra entre duas alas do liberalismo burguês. Tanto dos liberais que defendem acriticamente a medida de força do judiciário contra Silveira, quanto dos liberais que defendem o regime democrático em favor do deputado bolsonarista.
Devemos apoiar a repressão do Estado aos fascistas?
O STF é o mais autocrático dos poderes, diferente do Executivo e do Legislativo, o Judiciário no Brasil não se submete ao sufrágio popular. O STF é a máxima instância da democracia dos ricos contra a esmagadora maioria da população trabalhadora. Então alguém poderia alegar que um poder não eleito caçou os direitos políticos de um representante político eleito em voto popular. Os defensores da democracia em termos gerais deveriam se opor a que um poder mais autocrático se imponha sobre um poder menos autocrático. Sim, porque também sabemos o quanto é viciado também a democracia que elege os parlamentares no país, ainda que participemos dela e a defendamos contra a ditadura militar, a tortura e medidas como o AI-5.
E mais, foram todas as instâncias da República democrática liberal, todos os quatro poderes (incluindo, obviamente, a mídia), “com o supremo com tudo” que realizaram o golpe de Estado em 2016 e criaram o monstro Bolsonaro, favorecendo, em maior ou menor grau, sua eleição em 2018, seguindo apoiando todas as medidas econômicas dele em favor do neoliberalismo, das privatizações, contra a classe trabalhadora. Apoiar acriticamente toda e qualquer medida antibolsonarista desse Estado é fortalecê-lo. O antibolsonarismo desses golpistas tem um caráter ficcional. Suas medidas contra esse ou aquele orador bonsolarista são incapazes de conter as tendências fascistas e, em essência, não desejam fazê-lo.
O Estado democrático de direito é a ditadura do capital em sua forma liberal, serve a burguesia contra os trabalhadores, mata a classe trabalhadora de fome, de pandemia ou de bala. Quando acredita ser necessário, o capital financeiro realiza golpes na própria democracia burguesa e impulsiona o recrudescimento do regime político, apostando nos métodos de governança fascistas para conter a revolução social e/ou expandir suas margens de lucros, superexplorando os trabalhadores, como está acontecendo agora nesse novo ciclo de acumulação aberto durante o processo golpista e inflacionário. O regime político liberal, e essa não é a primeira vez que ocorre no Brasil, quando lhe convém, opera, não sem rupturas da ordem democrática, um transformismo no seu Estado capitalista em favor do fascismo. O governo Bolsonaro é uma espada de Dâmocles do capital financeiro sob a cabeça do proletariado fazendo a permanente ameaça de recrudescer os mecanismos golpistas e repressores.
O governo Bolsonaro possui as características predominantes de um governo fascista. Diferente dos anteriores, de Collor, dos tucanos e de Temer, Bolsonaro arregimenta setores de massas contra os direitos das massas e pela implantação de uma ditadura. Mas apesar dessas aspirações do governo, o Estado ainda não se converteu em fascista por contradições dentro da frente golpista e pela resistência dos trabalhadores e da população em geral. O Estado se torna fascista:
“antes de tudo e sobretudo, destruir as organizações operárias, reduzir o proletariado a um estado amorfo, criar um sistema de organismos que penetre profundamente nas massas e esteja destinado a impedir a cristalização independente do proletariado. É precisamente nisto que consiste a essência do regime fascista.” (Trotsky, Revolução e Contrarrevolução na Alemanha).
O bolsonarismo deseja e precisa dar esse salto de qualidade para controlar o Estado. Precisa porque sabe que pode cair em desgraça se perder o governo, corre o risco de ser preso. Sabe que para salvar as medidas anti-operárias tomadas por Bolsonaro, diante de um processo de ascenso dos trabalhadores, pode ser obrigada a prender Bolsonaro e sua família para não perder as medidas, entregar o anel para não perder os dedos. O bolsonarismo é um tipo de fascismo decadente, mas armado, controla o executivo federal e seus recursos, quanto mais desesperado, mais perigoso.
Devemos defender os direitos democráticos dos fascistas?
Os porta-vozes do bolsonarismo, como Daniel Silveira, um PM fascista que se tornou deputado federal na onda reacionária das eleições de 2018, se esforçam por animar seus apoiadores a completar o ciclo golpista, a converter o Estado liberal em Estado fascista, através de um novo AI-5.
Como deputado Daniel Silveira votou a favor da MP 867 (que anistia desmatadores); da MP 910 (conhecida como MP da Grilagem); do PL 3723 que regulamenta a prática de atiradores e caçadores; do Novo Marco Legal do Saneamento; da anistia da dívida das igrejas; do "Pacote Anti-crime" de Sergio Moro; da PEC da Reforma da Previdência; do congelamento de salário de servidores públicos (2020). E Daniel votou contra que os responsáveis por rompimento de barragens sejam criminalizados e que os professores estivessem fora das regras da nova Reforma da Previdência. Até aí, nada distinto do que todo o Centrão já faz.
Todavia, qualquer um que se detiver para analisar os vídeos do Deputado vai identifica-lo com o fascismo. Silveira não é apenas um deputado representante dos interesses da burguesia em geral. Ele é um fascista. Ele defende a tortura, a ditadura militar e o AI-5. Durante uma manifestação contra Jair Bolsonaro, Daniel disse que torcia para que um dos manifestantes contrários ao então candidato "tomasse um tiro no meio da caixa do peito.” (Wikipedia).
Essa é a sua liberdade de expressão, a propaganda fascista. O fascismo quer ver os trabalhadores escravizados e os comunistas mortos. Se algo lhes tirar de circulação, não vamos ser nós que vamos defender que sejam postos de volta a sua função política anticomunista e antioperária. Não defenderemos sua liberdade de expressão. Todos as organizações e militantes de esquerda que foram condescendentes com o fascismo, não foram muito agradecidos quando ele se fortaleceu. Melhor que os fascistas brasileiros fossem cassados e estivessem presos pela força de comitês e tribunais populares, mas nem por isso vamos gastar uma vírgula defendendo sua libertação.
O PCO, ao defender os direitos democráticos dos fascistas, invoca posições de Trotsky em situações nacionais em que o movimento fascista não governava como no Brasil de 2022. Por exemplo, em uma carta em que defende que deveria depor no Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara, o Comitê Dies dos EUA em 1939, que veio a ser o precursor do Comitê montado no Senado que se tornou o Gabinete do Ódio do Macartismo aos depois. O Comitê parlamentar anticomunista cogitou colher o depoimento de Trotsky por ser ele o arqui-rival do stalinismo, o convocou para depor no dia 12 de outubro daquele ano, adiou o depoimento e depois da declaração de Trotsky clarificando porque havia aceitado depor, publicada no New York Times de 8 de dezembro de 1939 declinou do convite. Dies buscava justificativas para prescrever as atividades do PC dos EUA, seção do Comitern (proibidos legalmente de participar dos sindicatos), e como camuflagem anunciava coibir os extremismos, ou seja, que também proibiria também como atividades antiamericanas as dos fascistas dos EUA. Buscando realizar o depoimento, mas evitando jogar o jogo de Dies Trotsky dizia: “Sendo um oponente irreconciliável não apenas do fascismo, mas também do Comintern atual, sou ao mesmo tempo decididamente contra a supressão de qualquer um deles”. Segue Trotsky em sua declaração “Porque eu concordei em comparecer perante o Comitê Dies:
“Nas condições do regime burguês, toda supressão dos direitos políticos e da liberdade, não importa a quem sejam dirigidos no início, no final inevitavelmente pesa sobre a classe trabalhadora, particularmente seus elementos mais avançados. Essa é uma lei da história. Os trabalhadores devem aprender a distinguir entre seus amigos e seus inimigos de acordo com seu próprio julgamento e não de acordo com as dicas da polícia.”
Trotsky, um defensor incondicional da URSS, buscava desmascarar o antifascismo liberal ao mesmo tempo em que deveria saber que o objetivo central do Comitê parlamentar era voltar-se contra o comunismo e os trabalhadores. O primeiro Comitê parlamentar de tipo de Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara (HCUA ) do Congresso dos EUA foi montado ainda em 1919, no chamado primeiro Red Scare (susto vermelho). Foi dele que partiu a primeira campanha histérica anticomunista logo após a Revolução bolchevique de 1917, onde provavelmente teve início a russofobia reanimada frequentemente na sociedade estadunidense até hoje.
Nessas circunstâncias, diante de instituições condescendes com o fascismo e com a KKK, Trotsky fez tais declarações. Mas é um erro tentar transcrever de forma mecânica e talmúdica as posições de Trotsky para a realidade brasileira de 2022, quando temos um governo fascista que aspira domar os outros poderes e tornar o Estado fascista. A concepção liberal de democracia aí usa Trotsky, convertendo-o em um liberal. O argumento principal inclusive é esse, de que se o Estado ataca a direita, terá mais justificativa para atacar depois aos trabalhadores. Esse raciocínio aplicado nessa situação, acredita existir uma equidade, uma isonomia na ação do Estado na luta de classes, acredita que o Estado burguês de certo modo é justo distribuindo igualmente ataques à esquerda e à direita, em última instância, acredita que o Estado não é um instrumento de opressão de uma classe por outra, acredita no mito que o estado é público. Nunca precisaram fazer nenhuma contenção da direita para prender o Lula, pelo contrário. Para atacar aos trabalhadores, basta que sejam trabalhadores. Não precisa nenhuma jurisprudência que justifique. Na lógica dos setores da esquerda que defendem o direito de opinião dos fascistas, temos que defender a direita fascista contra o Estado capitalista. Esse raciocínio tem dois grandes problemas do pensamento mecanicista e uma conclusão prática desastrosa:
1. Não entende ou despreza a existência de contradições permanentes dentro de cada uma das classes sociais, entre seus representantes políticos e entre seus poderes estatais. E é isso que leva hoje a Globo e o STF a se chocar com o bolsonarismo. Não fazem isso intencionalmente pensando em uma lei futura contra a classe trabalhadora. Fazem porque não são um todo homogêneo, tem diferenças intra-burguesas. Diferenças que devem ser exploradas pelos políticos da classe trabalhadora, pelos revolucionários comunistas na luta de classes no âmbito nacional e internacional, como vemos agora na Guerra na Ucrânia, entre o imperialismo e a Rússia;
2. A justiça burguesa é burguesa, o parlamento burguês é burguês e o executivo, também. Eles existem para beneficiar aos capitalistas na luta de classes. Eles não precisam de justificativas prévias para atacar aos trabalhadores e a esquerda. Quando elas existem, é melhor, mas quando não existem, eles criam. O que impede que eles nos ataquem, assim como o que vai nos livrar de levar uma bala no peito disparada por um fascista ou um policial é a correlação de forças na luta de classes, é a resistência dos trabalhadores, se não fosse ela, ainda estaríamos no pelourinho. Não vai ser defendendo fascista que vamos nos livrar dos ataques futuros, vai ser usando toda e qualquer contradição entre os inimigos de classe para enfraquecê-los e nos fortalecer.
A conclusão prática desastrosa é a de militantes que se concebem comunistas saírem em defesa de fascistas processados, demitidos, presos ou o que seja. Obviamente, Trotsky, jamais o fez, jamais o faria e deve estar se revirando no túmulo diante de que hoje tem gente fazendo em seu nome. A bem da verdade, sob essa política defendida pelos camaradas do Brasil, Trotsky teria que se opor ao processo policial aberto contra os stalinistas mexicanos que atentaram contra ele sob o comando de David Siqueiros, e os trotskistas mexicanos deveriam fazer campanha pela libertação do assassino de Trotsky, Ramon Marcader, porque “toda supressão de direitos políticos e liberdades, não importando contra quem seja dirigida no começo, no final inevitavelmente recairá sobre a classe operária”. Frase que o PCO converteu em dogma.
Não apoiamos a repressão nem o fortalecimento do Estado capitalista, mas uma vez que essa ocorra contra os fascistas, não somos nós os comunistas, jurados de morte pelos fascistas, que vamos defende-los, que famos fazer campanha pela libertação ou direitos políticos desse ou daquele canalha, como nenhum revolucionário o fez. De modo alguma defendemos a democracia em geral para os inimigos de classe, principalmente para os fascistas. Defender a liberdade de expressão e de opinião para os fascistas, defender que se criem partidos fascistas é favorecer a campanha do fascismo pela supressão da democracia dos trabalhadores (direito de reunião, de manifestação, de organização política, sindical, assembleias, greves, associações) que existe dentro da democracia burguesa. O Estado se torna fascista, na concepção de Trotsky, quando suprime esses elementos da democracia operária que existem graças a luta de classes, dentro do regime democrático burguês.
Os que defendem os direitos democráticos para os fascistas, defendem o regime democrático liberal do ponto de vista de um idealismo mecanicista. Os que apostam na repressão das instituições do Estado burguês como escudo contra os fascistas, serão vítimas desse Estado, como foi o PT nos últimos anos de golpe, lawfare, prisões e eleições fraudadas. Ambos os lados dessa polêmica são liberais, os que defendem a democracia para os fascistas (sob qualquer justificativa) e os que defendem acriticamente as medidas repressivas do Estado burguês, porque acreditam que são elas que vão evitar o crescimento do fascismo.
O fortalecimento do Estado democrático de direito, como defendem todos os reformistas, conduz ao fascismo seletivo ou sistemático. O fortalecimento dos fascistas, obviamente, pode leva-los a estabelecer o seu método não apenas de governo, mas já de Estado.
Não existe atalho, nosso combate contra o fascismo deve se apoiar nas contradições da luta de classes, mas só pode contar em última instância com o fortalecimento das organizações dos trabalhadores e de sua autodefesa contra o fascismo. Contra os fascistas, o Estado burguês e o imperialismo, democracia proletária, revolução socialista, ditadura do proletariado.
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